segunda-feira, 10 de junho de 2019

O ANO DA MORTE DE RICARDO - O PORQUÊ DA ESCOLHA DESTE HETERÓNIMO SEGUNDO SARAMAGO.





 in A estátua e a pedra de José Saramago,
Fundação José Saramago, 2013  

            José Saramago contactou com Ricardo Reis muito cedo, muito antes de saber o que era um heterónimo ou quem era Fernando Pessoa.

            “Da obra magnífica de Ricardo Reis impressionava-me sobretudo um verso que diz “sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”. Quer dizer, deste formidável poeta, que tanto me atraía, indignava-me esta espécie de indolência, esta filosofia de vida tão complacente que se me afigurava monstruosa. […]
            […] caiu-me do teto uma evidência: o ano da morte de Ricardo Reis. Isto é, pensando que Pessoa, que morreu em 1935, não deixou escrita em lugar algum a data da morte de Ricardo Reis, pensando que o heterónimo não pode viver muito mais que o criador, pensando que todos temos nove meses de vida que não contamos porque não vivemos fora das nossas mães, pensando que talvez depois de mortos possamos contar com outros nove meses de vida, que será mais ou menos o tempo que dura a nossa memória, pensando em tudo isto, a sentença que me caiu do teto, “o ano da morte de Ricardo Reis”, misturada com o antigo rancor e a permanente admiração, animaram-me a confrontar Ricardo Reis com o espetáculo do mundo, no ano da sua morte que, na minha lógica, tem de ser 1936, quer dizer, o ano em que começou a Guerra de Espanha, o ano em  que a besta fascista ocupou a Etiópia, o ano em que o nazismo consolidou posições, o ano em que se criaram as mocidades e as milícias fascistas em Portugal… Num tempo convulso em que o que havia de melhor parecia desmoronar-se, […]  Ricardo Reis, o poeta das odes maravilhosas, sentava-se diante do mundo, como se de um pôr do sol se tratasse, e vendo o que se estava a passar, sentia-se sábio. Assim nasceu este romance […]”



terça-feira, 19 de março de 2019

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS - DEAMBULAÇÃO E SIMBOLOGIA DE O ADAMASTOR



Ao longo do romance, Ricardo Reis deambula pela cidade com o único propósito de observar a cidade. Ele será uma espécie de guia que nos dará a conhecer, leitores, o espaço citadino lisboeta que vai observando acidentalmente e que será, naturalmente, objeto da sua visão crítica.
Lisboa é descrita como uma cidade envolta pela chuva, triste, cinzenta, sem qualquer atrativo, deserta e imóvel numa metáfora do regime do Estado Novo, que cerca os seus cidadãos, maioritariamente “súbditos, escravos, submissos, reprimidos, oprimidos”, sem vontade para lutar e para sair da situação em que se encontra.
Na sua deambulação pela cidade, Ricardo Reis adota a atitude de observador acidental já conhecida de Cesário Verde, mas evidenciando a sua costela crítica a fazer lembrar o Eça de Os Maias quando, no final do romance, se refere à estagnação de Lisboa – Portugal - passados dez anos.
“A deambulação geográfica nesta obra é igualmente uma viagem literária e quando Ricardo Reis se embrenha no labirinto da cidade, é nas suas personalidades culturais que encontra os marcos norteadores do caminho. Assim, a viagem geográfica cruza-se com a viagem literária e as alusões constantes a Luís de Camões, a Eça de Queirós e ao próprio Fernando Pessoa, autor da Mensagem, ou aos heterónimos, completam a revisitação de Ricardo Reis a Lisboa, (…)”
Pontos da cidade mencionados são o monumento ao Adamastor – um dos preferidos de Ricardo Reis e perto do qual habita, simboliza os obstáculos do passado, opositor à marcha dos portugueses, representando no romance a aurora de uma sociedade nova – o Rossio, a Baixa ou a Praça do Comércio. Com Ricardo Reis partimos do Cais do Sodré, seguimos pela Rua do Alecrim até ao Largo do Barão de Quintela, chegamos ao Largo de Camões, ao Alto de Santa Catarina, ao Chiado.
Os passeios pela cidade, as digressões pelo espaço labiríntico da cidade são igualmente viagens efetuadas através de um “eu”, que para elas encontra inspiração nas deambulações pela capital. Camões constitui o elemento orientador, o guia dos poetas em geral e de Ricardo Reis em particular.

O Gigante Adamastor

Caixa de texto: Simbolicamente, o número 7 corresponde ao Antigo Testamento; o número 8 pertence ao Novo Testamento, anunciando o Futuro.


No romance, a estátua do Adamastor é, assim como a estátua de Camões, um marco norteador dentro do labirinto da cidade de Lisboa. Geograficamente, o Adamastor encontra-se num ponto de cruzamento de caminhos. O Adamastor, símbolo de todos os obstáculos, no passado, torna-se no presente a rosa-dos-ventos, que anuncia o novo roteiro do povo. Assim, nas coordenadas do texto, sendo a confluência das 8 direções cardeais, ilumina duplamente o horizonte de expetativas humanas e anuncia um mundo novo.

Oito anos após a partida de Ricardo Reis para o Brasil, o monumento foi erigido.
Oito anos depois de estar no Alto de Santa Catarina, Ricardo Reis regressa à pátria.
O Adamastor simboliza as dificuldades / obstáculos que o homem tem de ultrapassar para atingir os seus objetivos e tem, no romance, a função de representar as forças opressoras da ditadura.



domingo, 17 de março de 2019

O ANO DA MORTE DE RICARDO, O TÍTULO DO ROMANCE




O título, O Ano da Morte de Ricardo Reis...

O título do romance remete-nos para o tempo histórico ou da História, 1936, que é, simultaneamente, o ano da morte de Ricardo Reis.

Ricardo Reis chega a Lisboa em 30 de dezembro de 1935, um mês depois da morte de Fernando Pessoa. Permanecerá 9 meses na cidade, findos os quais morrerá, indo fazer companhia ao seu criador, Fernando Pessoa, no Cemitério dos Prazeres.

À semelhança do que já acontece em outros romances de José Saramago, o discurso da ação e o da História entrelaçam-se, confirmando o grande fascínio do século XX pela História.

Assim, estruturalmente, assistimos neste romance à recuperação de um tempo que corresponde ao ano de 1936, de um poeta, Ricardo Reis, de uma obra, a pessoana, sem esquecer a ficção e o futuro de Portugal, país envolvido numa série de acontecimentos mundiais que conduzirão ao eclodir da Segunda Guerra Mundial.

Ricardo Reis sente-se perdido numa Lisboa labiríntica, triste, suja e barulhenta dos mercados, pobre e desconhecida para si e que contrasta vivamente com a Lisboa dos cafés históricos e dos teatros restaurados, com o progresso representado por uma burguesia rica e uma classe média remediada.

Uma cidade, afinal, com a qual Ricardo Reis já não se identifica, passados que foram 16 anos de ausência no Brasil.

quinta-feira, 14 de março de 2019

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS E O ROMANCE HISTÓRICO.



No século XX, a relação entre história e verdade foi fortemente abalada e o relato histórico passou a ser entendido como uma versão dos acontecimentos ligados ao poder.
A História deixou de ser encarada como um "armazém de verdade" e o texto histórico passou a ser visto como uma forma parcial e pessoal de abordagem dos factos.
O Romance da segunda metade do século XX recorre ao discurso histórico e, frequentemente, os factos que reconhecemos surgem a nossos olhos sob um ponto de vista novo sendo que o discurso histórico regista apenas uma parte do que aconteceu. 
No Romance histórico do século XX, os acontecimentos passam a ser perspetivados de uma forma múltipla, expondo o ponto de vista do homem comum, dando voz a quem nunca a teve e apresentando versões diferentes de factos reconhecíveis. 

quarta-feira, 6 de março de 2019

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, JOSÉ SARAMAGO - INTRODUÇÃO



Estudado na faculdade em tempos idos, um tanto esquecido nos armários e na memória, foi necessária a leitura de apontamentos e de publicações entretanto surgidas para que alguns dos posts que se seguem fossem possíveis. São somente o resultado de mais um percurso de aprendizagens agora partilhadas e que, esperemos, possam vir a ser úteis.


A ficção do século XX revela um grande fascínio pela História. (Preparar o Exame Nacional; Português 12; Areal).


A época, a política.
1936. A Europa vive um período bastante agitado, dividida entre forças de direita e de esquerda, umas impunham-se sob a forma de ditaduras, outras procuravam afirmar-se.

Em Portugal, a realidade era a de uma ditadura com Salazar como líder, ambos assentes na ideia de uma moralidade cristã, em que Salazar era apresentado como o salvador, e na criação de movimentos como a Mocidade Portuguesa que propagandeavam junto da população os valores e a ideologia do regime. Com o objetivo de acalmar os mais céticos, eram utilizadas como armas, a perseguição policial, a prisão e a tortura, tudo medidas contra quem se opunha à ordem que vigorava na época, tendo mesmo sido criada uma polícia, a P.V.D.E. (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), que garantia a normalidade. O povo, esse, vivia na miséria e o país estagnava.

Politicamente, Portugal vive os primeiros anos do Estado Novo (193-1974), um período de Ditadura dirigido por Salazar. Esta é também a época de ascensão dos regimes nacionalistas espanhol, alemão e italiano. Em Portugal, a máquina do regime de Salazar divulga uma imagem idealizada e enganadora das realidades portuguesa e europeia. (Preparar o Exame Nacional; Português 12; Areal).

1936 é também o ano que marca uma sucessão de acontecimentos que se revelarão determinantes para a eclosão da Segunda Guerra Mundial.








quinta-feira, 20 de setembro de 2018

FERNANDO PESSOA E HETERONÍMIA - APONTAMENTOS / NOTAS SOLTAS



APONTAMENTOS / NOTAS SOLTAS



TEXTO INICIAL…

A melhor proposta para a explicação da heteronímia é-nos dada pelo próprio F. Pessoa quando escreveu “o ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro – eis tudo.”
Na verdade, o poeta tem a capacidade de”voar outro”, ou seja, é capaz de construir pessoas inexistentes que sentem, como as pessoas reais, sensações e emoções ainda que diferentes das do seu criador. Este processo assemelha-se ao do ator quando representa as suas personagens, estando na sua origem a capacidade de se despersonalizar.
Pessoa transforma esta despersonalização dramática num modo de criação literária muito bem conseguido, em que cada personagem difere do seu criador, representando uma espécie de drama. Quando estão juntas, estas personagens formam um outro tipo de drama: o drama em gente.

NOTAS SOLTAS

É o profundo autoconhecimento de Pessoa que o leva a desejar ser outro, “Ser outro constantemente” revelando o “eu” fragmentado e revelando o drama de personalidade que o leva à dispersão do real e de si mesmo.
O poeta possui uma grande capacidade de despersonalização “Quantos sou?” e é na heteronímia – cria diferentes personalidades – que Pessoa encontra a possibilidade de exprimir estados de alma e consciência distintos.
Este processo de despersonalização faz dele um ser plural, em que pensar e sentir se harmonizam e assim melhor expressarem a apreensão da vida, do ser e do mundo, permitindo “sentir tudo de todas as maneiras”.
“’Por a alma não ter raízes’, Fernando Pessoa  pretende “viajar” no seu próprio ser, submetendo-se ao processo de outração, de modo a experienciar todas as possibilidades do “eu”. Indivíduo singular, Pessoa apresenta-se “múltiplo”, querendo exprimir o todo e abarcar a totalidade. É a fragmentação que lhe permite, então, ser “variamente outro” e alcançar a unidade.”
A fragmentação do “eu” pessoano resulta da constante procura de respostas para o enigma do ser, aliada à perda de identidade.
Pessoa vê-se confrontado com a sua pluralidade, ou seja, com diferentes “eu”, sem saber quem é nem se realmente existe. O “eu” nega-se como um todo.
Refere o “eu” lírico “Multipliquei-me, para me sentir”, encontrando, assim, a salvação na fragmentação, na vida inventada, em que cada um dos seus heterónimos exprime um novo modo de ser e uma visão própria do mundo.
Despersonalizando-se, o ”eu” desaparece, fazendo surgir a persona, isto é, a máscara.
No interior do poeta encontram-se vários “eu”. Enquanto ser múltiplo, Pessoa não consegue encontrar-se nem definir-se em nenhum deles, sendo incapaz de se reconhecer a si próprio – é um mero observador de si mesmo. Sofre a vida sendo incapaz de a viver.
No poema “Não sei quantas almas tenho”, o sujeito poético confessa a sua fragmentação em múltiplos “eu”, revelando a sua dor de pensar e a intelectualização do sentir. É esta última que o conduz através de um processo constante de autoanálise. Em dúvida e indefinido quanto à sua identidade, angustiado pelo autoconhecimento – “Por isso, alheio, vou lendo / como páginas meu ser” – é incapaz de viver a vida, mergulhando no tédio e na angústia existenciais.
Será através da fragmentação do “eu” que Fernando Pessoa tenta encontrar a totalidade de forma a conciliar o ato de pensar e o do sentir.


terça-feira, 23 de janeiro de 2018

'SCREVO MEU LIVRO À BEIRA MÁGOA - BREVE ANÁLISE



'Screvo meu livro à beira mágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.

Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?

Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?

Ah, quando quererás voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?


Mensagem, Fernando Pessoa


-          Num momento em que a Pátria se sente “entristecer”, o sujeito poético escreve o seu “livro à beira mágoa” com os “olhos quentes de água”, manifestação física da sua Dor e numa clara alusão ao ato de “chorar”.

-          O apelo a “Senhor” revela a esperança que o “eu” deposita neste, como única fonte de alento.

-          Este “Senhor” conhece ao longo do texto outros epítetos: “Rei”, 2ªest. e “Encoberto”, 4ª est., os quais nos remetem para o manifesto desejo da vinda de um Messias Salvador – o Sebastianismo como mito messiânico.

-          Vislumbra-se na esperança depositada no regresso deste “Messias”, uma tentativa de atenuar o próprio sofrimento que, deste modo, transforma o desespero em esperança através do sonho que, espera-se, virá a realizar-se no futuro.

-          Formalmente, de salientar a frequência de interrogações retóricas que podem sugerir o já referido estado de desespero do “eu” ou, também, a expetativa face a esse “Senhor” que há-de vir;  a confirmá-lo, a predominância de formas verbais no futuro.

-          Num e noutro caso está bem patente a dúvida que martiriza o sujeito poético relativamente à “Hora” do regresso do “Senhor” por ele sonhado.


-          Nota final – Este poema encontra-se profundamente marcado pela subjetividade lírica, pela interiorização das emoções e dos sentimentos.